Observações, assim: III

            Eu lembro como eu aprendi a falar “Vai tomar no cu”. Eu era bem pequeno ainda, sei principalmente porque o fato em questão ocorreu quando eu ainda ia à igreja com a minha mãe por não poder ficar em casa sozinho; tempos horríveis, diria eu, mas tudo acaba virando nostalgia agora. Há uma rua em especial em Mongaguá que, soergue-se antiga, sem asfalto, ainda aos paralelepípedos e o fato em questão ocorre nela.

Tudo ainda era sépia, tudo ainda era calmo. Eu voltava com a minha mãe para casa, andando de mãos dadas; naquele tempo eu ainda tinha um amor incomparavelmente ingênuo por ela, diferente do que eu tenho hoje, que parece mais tolo, mas que ainda é um amor, só que dessa vez parece sempre se alentar pelo que ela já fez por mim, já naquela época não havia por que, era simplesmente amor por mamãe. Era essa rua, em especial, que até hoje ainda parece antiga, tinha uma casa de veraneio na esquina, era bem pequena, toda fechada e com um passo você chegava da calçada até dentro da casa. Na laje, tão pequena quanto aparentava ser a casa, um papagaio e um pastor alemão muito grande ficavam por lá. O papagaio sempre falava muito com quem passava na rua, eu sempre adorava passar por ali. Umas semanas em diante eu voltava pelo mesmo caminho com a minha mãe, mas aí o papagaio havia aprendido a falar “Vai tomar no cu” e falou bastante enquanto passávamos: “Vai tomar no cu, vai tomar no cu, vai tomar no cu, vai tomar no cu” e eu, sem muito entender, repetia pra mamãe: “Vai tomar no cu, vai tomar no cu”.

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Eu ainda ouvia em conchinhas o barulho do mar, ouvia o barulho do mar também à noite, na casa do meu avô quando abria a janela do quarto dos fundos e topava de cara com o breu do oceano e algumas luzinhas que cintilavam no fundo daquele azul escuro, mais tarde eu comecei a ouvir o barulho do mar em tudo quanto era lugar, nos fones de ouvido, no silêncio à noite na varanda, meio aos gemidos da moça amada, tudo ecoava o barulho do mar e até hoje o barulho do mar ecoa onde não deveria, quando a música acaba e eu estou no meio do cruzamento da Interlagos com a Sabará, o barulho do mar e o sépia reaparecem e uma década inteira se desenha meio ao caos urbano.

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            Não tínhamos nada com nos preocupar, eu era uma criança e ela uma mulher, todo dia à tarde íamos à praia nadar, eu levava alguns baldes para brincar na areia e íamos de mãos dadas. A rua esburacada, todas as casas vazias, a tarde caindo calma e suavemente, a ambiência do morro de fundo, a dona Genilda lavando a calçada do edifício Telhadela, os caminhões da Lucimar trabalhando, a casa do meu primo Vinícius às traças, abandonada e vazia, a pracinha povoada de algumas crianças jogando bola e a pista com esporádicos carros que viajavam para lá e para cá. Atravessávamos e já estávamos no centro da cidade, e em poucos cinco minutos estávamos na praia. Nessa época eu ainda não gostava muito da casa do meu avô, mas hoje sinto uma imensa falta daquela casa defronte à praia, de abrir as janelas e deitar na cama, de olhar por dentre os ladrilhos povoados de flores, do jardim cheio de pimentas e mostardas, do fundo da casa cheio de tralhas, das galinhas e dos galos no terreno de trás, da ducha que eu sempre tomava quando chegava da praia, do carpete do segundo andar, da televisão no cantinho da sala defronte à poltrona onde eu, às vezes, jogava videogame, saudades também da bolsinha de moedas do meu avô onde eu pegava algumas moedas e comprava chicletes. Íamos à praia e nadávamos fundo ao mar, nossas coisas eram poucas e ficavam a sós com a praia totalmente deserta, caminhávamos para o fundo e eu começava a temer “Água no umbigo, sinal de perigo”, mas eu tinha minha mãe. Hoje cheguei à certeza de que não há sensação melhor do que confiar sua vida a alguém que você ama.

“Pra gente que é da década de noventa tudo parece estranho –atravessamos um milênio em menos de dez anos de vida.” – Grazzi

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5 respostas para Observações, assim: III

  1. Ana Beatriz disse:

    Arrumei uma dessas bolsinhas de vô/vó, só pra ter a nostalgia da bolsa de moedas de volta! E outra, “visão sépia” é uma expressão muito perfeita pra definir tempos passados UAHSUAHSUAHS*–*

    • vittie disse:

      Hahahahah eu preciso arrumar uma também, principalmente pra guardar as moedas! E de fato, antigamente tudo parecia ser muito sépia, é a minha lembrança maior

  2. Came Dutra disse:

    Boa coisa pra te mandar de crb, uma bolsinha de dinheiro

  3. Came Dutra disse:

    Boa coisa pra te mandar de curitiba, uma bolsinha de dinheiro

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